Web série Doutrina social da Igreja: Liberalismo

Conheça ideologias que fazem oposição à Doutrina Social da Igreja.

Tempo médio de leitura 20 minutos

Conheça os textos anteriores:

O princípio da solidariedade

Participação

O princípio da subsdiariedade

Terminado os textos sobre os princípios que norteiam a Doutrina Social da Igreja, passo agora a explicar as ideologias que se opõe à ela ao não respeitarem a unidade dos seus princípios ou até mesmo ao se oporem aos fundamentos da mesma.

Nesse primeiro texto sobre as ideologias vou tratar da ideologia liberal ou liberalismo. Tido por muitos como apenas um modelo econômico e não uma ideologia, o liberalismo avançou com importante velocidade pelo mundo, mesmo entre os católicos, seduzindo até membros do clero, especialmente nos séculos XVIII e XIX, tendo na Revolução Francesa (1789 – 1799) o seu ponto de partida para uma rápida difusão pelo mundo. Hoje, tal filosofia, está enraizada na mente de muitos, sem que nem percebam, levando a crerem que certos princípios liberais são como que partes da lei natural, o que é um grave erro.

O liberalismo de fato é uma ideologia na medida em que ele se fundamenta numa concepção errônea do homem e, a partir dessa concepção equivocada, se formula princípios e, sob esses princípios, se constrói todo um modelo econômico, político e social, que veremos mais adiante. Quando se parte de princípios errados, é inevitável que se corrompa o fim, assim sendo, o liberalismo, partindo de tais princípios, é, inevitavelmente, um modelo corrompido e, ao ser implantado, torna-se corruptor de toda a sociedade.

Para efeito didático, podemos dividir o liberalismo em cinco partes:

  • O liberalismo como filosofia;
  • O liberalismo como uma “evolução” das filosofias modernas;
  • O liberalismo econômico;
  • O liberalismo e a sociedade/Estado;
  • As relações entre moral X direito e entre a cultura X religião, no liberalismo.

É o liberalismo como filosofia que fundamenta tanto o liberalismo econômico, como a sua visão de Estado e bem como a construção de toda a sociedade, assim sendo, todos os erros do liberalismo podem encontrar suas raízes nessa filosofia liberal, na sua visão equivocada do homem e de tudo que emana dele, seja da sua sociabilidade, seja da sua religiosidade, com graves consequências na relação do homem com a lei moral. É na filosofia liberal que se encontram os erros de princípios que corrompem todo o liberalismo.

O liberalismo como filosofia

É da essência do liberalismo exaltar a liberdade humana, em que ela é a essência mesma da pessoa, ignorando que os atos humanos são livres na medida em que supõe uma guia ou orientação da razão. 1

O liberalismo tem como fundamento o princípio do “bom selvagem” do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) em que se defende o erro de princípio de que o homem é naturalmente bom e justo, possuidor de uma liberdade absoluta, e que é a sociedade que o perverte na medida em que lhe impõe limites à sua liberdade. 2  Sendo então o homem bom pelo simples fato de ser homem, sem que a perfeição requeira educação, esforço ou decisão pessoal e sendo também a sociedade a causa de sua corrupção, tal filosofia defende a tese de que esse homem não pode sofrer nenhum tipo de limitação à sua liberdade provinda da sociedade, pois essa privação é a causa de sua corrupção. Consequentemente, o homem necessita de uma plena liberdade, não podendo ser submetido a nenhuma regulação ética que não provenha de sua própria autodeterminação, para que ele possa alcançar um progresso indefinido e necessário, tanto intelectual, quanto moral.1 Por essas razões, o Papa São Paulo VI afirmou que o liberalismo filosófico é uma afirmação errônea da autonomia do indivíduo, na sua atividade, nas suas motivações e no exercício da sua liberdade. 3

Esse princípio rousseauniano está em oposição ao princípio católico da dignidade humana, em que o homem é um ser criado bom a imagem e semelhança de Deus, mas que após o pecado original, carrega em sua natureza as marcas dessa queda, que são as concupiscências,  impulso do apetite sensível contrário aos ditames da razão humana, onde o homem é inclinado ao pecado. 4 Além disse, o homem, criatura que Deus amou de forma única, não foi abandonada às suas concupiscências após o pecado original, mas foi resgatado por Deus em Jesus Cristo, que assumiu a condição humana, menos o pecado, e remiu o homem com Seu Sangue Preciosíssimo e assim, na Graça de Deus, o homem pode ascender em virtudes até a perfeição, quando seu coração alcança a perfeita configuração ao Homem Perfeito, Cristo Senhor. 5 Assim sendo, o homem não é naturalmente bom e justo por conta do pecado original, mas pode vir a ser por obra de uma graça sobrenatural.

O liberalismo como uma “evolução” das filosofias modernas

A filosofia liberal é um fruto maduro do avançar das filosofias modernas onde progressivamente se afastaram da verdade. Ela possui suas raízes em filosofias condenadas pela Igreja em vários de Seus Documentos. Quero destacar aqui as principais filosofias modernas, bem como revoluções e ideologias frutos das mesmas, e que foram as causas das grandes “convulsões” sociais dos últimos 5 séculos:

  1. O nominalismo: formulado no século XIV pelo frade franciscano Guilherme de Ockham (1285 – 1347), negou que a inteligência humana pudesse ter acesso a verdades universais, estando o conhecimento humano limitado à apreensão das realidades sensíveis, ou seja, somente o indivíduo, na sua experiencia pessoal, pode definir a verdade, que não é absoluta, mas relativa a experiência individual de cada pessoa.6, 7 Tal corrente abriu o precedente filosófico de separar a razão e a fé e de considerar Deus inacessível à razão.
  2. A Renascença: iniciada no século XIV, por volta de 1350 e durou até o século XVI por volta de 1550. Esse movimento social, político e cultural instaurou uma “nova civilização” no lugar daquela que estava sendo construída pela Santa Igreja, 8 que havia suplantado a civilização pagã e iniciado uma era cristã com profundas e benéficas consequências na formação de uma sociedade humana mais virtuosa.
    A Renascença foi inspirada nos valores da Antiguidade Clássica e geradora de modificações estruturais na sociedade, influenciados por pensamentos do paganismo da era pré-cristã e que resultou na reformulação total da vida medieval, dando início à Idade Moderna. 9 Na prática, o Renascentismo foi um renascimento do paganismo, 8 ou seja, de uma virada da era cristã para uma era neopagã.
  3. O humanismo: iniciado no século XIV e dentro do contexto do Renascentismo, foi um movimento de glorificação do homem e da natureza humana em detrimento à Gloria de Deus. Podemos dizer que o humanismo, surgido no renascentismo, iniciou um processo de substituição de Deus, como o centro da história, pelo homem. Segundo esse pensamento, o homem, a obra mais perfeita do Criador, era capaz de compreender, modificar e até dominar a natureza, deixando de ser, com isso, um colaborador da Graça Divina para ser um controlador da mesma. Os humanistas buscavam interpretar o cristianismo utilizando escritos de autores pagãos da antiguidade, mas sem a devida subordinação à Tradição da Igreja. O humanismo se tornou referência para o surgimento das filosofias modernas, especialmente para os filósofos iluministas do século XVIII. 9
  4. A revolução protestante ou protestantismo: iniciado em 1517 pelo monge agostiniano Martinho Lutero (1483 – 1546). Apesar de ser conhecida mais pelo termo “reforma” protestante, é fato evidente que esse termo não é o correto para conceituar o que ocorreu, já que Lutero renunciou a todos os princípios da fé católica com relação a Sagrada Escritura, a Tradição apostólica, o magistério do Papa e dos Concílios, o episcopado, que eram vividos desde o princípio do cristianismo e, nesse sentido, Lutero destruiu o conceito de desenvolvimento homogêneo da doutrina cristã, tal como explicado na Idade Média, e chegou a negar os sacramentos como sinais eficazes da Graça neles contida, substituindo essa eficácia objetiva por uma fé subjetiva. Tão radical mudança não se configura uma reforma, mas sim uma revolução. 10
    Lutero é um fruto maduro do nominalismo de Ockham, mas foi além ao estabelecer uma direta oposição entre a fé e a razão defendendo a tese de que a razão, debilitada pelo pecado original, não é capaz de conhecer as coisas da fé. 11 
    As três “solas”, que são o núcleo básico do luteranismo e de todo o protestantismo, são consequências claras tanto do nominalismo, quanto do humanismo da renascença. O binômio “justificação pela fé” (sola fide) e “passividade da vontade humana” (sola gratia) são como que a ressonância teórica de um conflito entre a razão e as verdades da fé. Ele acreditou poder resolver esse conflito pela crucificação da razão humana tornando a filosofia não apenas um empreendimento inútil, mas sobretudo pernicioso e perigoso; a única via aberta é a theologia crucis, por meio da qual o homem, consciente da essencial corrupção de sua natureza e, portanto, de sua incapacidade de realizar obras boas e meritórias, descobre na Cruz a misericórdia de Cristo, em Quem fiducialmente confia e por cujos méritos se vê livre da imputação dos próprios pecados. 11 Dessa forma, Lutero separa a teologia da filosofia e a partir desse momento, a teologia se viu reduzida à Economia, pois, sendo o seu objeto próprio apenas o homem réu de pecado em sua relação com a Cruz redentora de Nosso Senhor, Deus é espoliado de sua majestade celeste e se torna um Deus ad hominem, isto é, todo voltado a encobrir, com “o manto dos méritos do Redentor”, os nossos pecados, sem que possamos nunca despojar-nos do homem velho e revestir-nos de Cristo, assim sendo, Lutero negava que o homem pudesse alcançar a santidade. 11 Já na “sola scriptura”, que define que Deus se Revela ao homem unicamente pelas Escrituras, cabe ao homem, no “poder do Espírito Santo”, a sua correta intepretação, deixando-a ao arbítrio do indivíduo. Tal “sola” coloca o homem, individualmente falando, no centro da Revelação Divina ao ser ele o porta voz de Deus, por meio da Bíblia e, como consequência, ocorre a subjetivação da vida religiosa em que a Verdade contida nas Sagradas Escrituras fica ao arbítrio do indivíduo, ao serem submetidas às interpretações pessoais e não mais à autoridade de um Colégio Apostólico a quem Deus deu sua devida autoridade e a quem Ele prometeu a Sua assistência. Essa crise na teologia, iniciada por Lutero, teve como consequência uma crise na filosofia, que a partir desse momento se separa de sua necessária relação com a teologia e se volta unicamente para a razão e o que se seguiu foi o surgimento de filosofias errôneas que, separadas da fé, se tornaram base para o nascimento das ideologias.
    Essa revolução teve como consequências mais perigosas o igualitarismo que se manifesta através da negação protestante da autoridade do Santo Padre, e do Magistério a ele subordinado, e da negação da diferença essencial e mística entre ministros ordenados e leigos e o liberalismo moral que se manifesta através do princípio protestante da livre interpretação da Sagrada Escritura que abriu o precedente para interpretações mais liberais quanto à moral. 12
  5. O racionalismo: formulado no século XVI, tendo como maior responsável o filósofo Renée Descartes (1596-1650), exaltou a razão humana ao absoluto, onde a mesma, sem relação alguma com Deus, é o único árbitro do verdadeiro e do falso, do bem e do mal, é a sua própria lei e suficiente para alcançar o bem dos homens e dos povos. 13
  6. O iluminismo: formulado no século XVIII e teve o filósofo Immanuel Kant (1724 – 1804) como um dos grandes representantes. Essa corrente filosófica deu lugar ao livre-pensamento a à concepção do homem como absolutamente autônomo quanto à moral. 6 Essa autonomia é fruto da oposição entre fé e razão que exaltou a luz da razão contra a luz sobrenatural da fé, entendida como algo inacessível à razão e por isso relegada a algo e ser vivido no privado, já que, segundo essa corrente filosófica, Deus é inacessível a luz natural da razão. Só admite que se conhece “as coisas tal como são conhecidas”, ou seja, como são interpretadas pela mente, mas não “as coisas em si mesmas”, ou seja, como elas são de fato baseado numa lei superior universal, já que rejeitam o conhecimento abstrato dos universais em favor simplesmente da experiência sensível, em outras palavras, eles trocaram o conhecimento intelectual e espiritual por um semelhante ao dos animais.
  7. O naturalismo maçônico: filosofia com íntima ligação com o iluminismo e base doutrinária da maçonaria, 14 tendo nela sua maior fonte de dispersão na sociedade. Os naturalistas defendem a ideia de que a natureza humana e a razão humana deveriam em todas as coisas ser senhora e guia. Negam que qualquer coisa tenha sido ensinada por Deus e não permitem qualquer dogma de religião ou verdade que não possa ser entendida pela inteligência humana, nem qualquer mestre que deva ser acreditado por causa de sua autoridade. 15 Na política, os naturalistas “decretam que todos os homens tem o mesmo direito, e são em todos os aspectos da mesma e igual condição; que cada um é naturalmente livre; que nenhum tem o direito de comandar a outrem; que é um ato de violência requerer que homens obedeçam qualquer autoridade outra que aquela que é obtida deles mesmos. […] É sustentado também que o Estado deve ser sem Deus e que nas várias formas de religião não há razão pela qual uma devesse ter precedência sobre outra; e que todas elas devem ocupar o mesmo lugar.” 16
  8. Somado à essas correntes filosóficas, há o influxo do protestantismo calvinista que fomentou o espírito de acumulação de riquezas. 6
  9. A ideologia liberal: “crê exaltar a liberdade individual, subtraindo-a a toda a limitação, estimulando-a com a busca exclusiva do interesse e do poderio e considerando, por outro lado, as solidariedades sociais como consequências, mais ou menos automáticas, das iniciativas individuais e não já como um fim e um critério mais alto do valor e da organização social 17 e […] procura afirmar-se tanto em nome da eficiência econômica, como para defender o indivíduo contra a ação cada vez mais invasora das organizações, como, ainda, contra as tendências totalitárias dos poderes políticos […], mas, os cristãos que se comprometem nesta linha não terão também eles tendência para idealizar o liberalismo, o qual se torna então uma proclamação em favor da liberdade? Eles quereriam um modelo novo, mais adaptado às condições atuais, esquecendo facilmente de que, nas suas próprias raízes, o liberalismo filosófico é uma afirmação errônea da autonomia do indivíduo, na sua atividade, nas suas motivações e no exercício da sua liberdade.” 3
  10. Revolução Francesa: ocorreu entre1789 e 1799 e foi fruto direto das filosofias acima citadas e, em especial, do iluminismo e da ideologia liberal. Contou com uma forte oposição à Igreja levando ao martírio milhares de católicos. 18 Se tornou o maior ponto de difusão do liberalismo pelo mundo e teve como consequências mais perigosas o igualitarismo que se manifestou através do ódio à nobreza por parte do povo e o liberalismo moral que se manifesta na recusa da sujeição a Deus, através da vitória do ateísmo e do agnosticismo que se dá com a separação radical entre a Santa Igreja e o Estado, fruto da separação entre a fé e a razão. 12
  11. Ideologia marxista: é o ápice maléfico da progressão das filosofias modernas e será tradada com mais detalhes no próximo texto.
  12. Revolução Marxista: foi iniciada na Revolução Bolchevique de 1917 na Rússia e teve como consequências mais perigosas o igualitarismo que se manifesta também nesta etapa através da negação explícita da existência de Deus na doutrina comunista de Marx e o liberalismo moral através de uma “onipotência do Estado” onde o mesmo ganha uma autoridade iníqua de atentar contra a lei natural e a Lei Divina. 12 Como disse mais acima, tratarei melhor do marxismo, bem como de suas revoluções, no próximo texto.

Ao conhecermos, mesmo que resumidamente, as correntes filosóficas do tempo moderno, podemos verificar que há uma “progressão” do pensamento filosófico até chegar da filosofia liberal e posteriormente na ideologia marxista. Não são correntes filosóficas independentes entre si, mas cada uma é como que a base teórica onde a corrente filosófica seguinte foi formulada, até chegar na filosofia liberal que também foi tomada como base para a ideologia marxista.

Uma característica dessa progressão filosófica é o progressivo afastamento da filosofia do seu mais supremo objeto: a verdade. Tal afastamento da verdade é fruto da separação progressiva entre a razão e a fé e também na progressiva substituição de Deus pelo homem, como centro da história.

O Papa São Pio X, citando trechos do Concílio Vaticano I, condenou essas correntes filosóficas, resumidamente chamadas de “filosofias modernistas”, na sua Encíclica Pascendi dominici gregis: “O Concílio Vaticano I assim definiu: Se alguém disser que o Deus, único e verdadeiro, criador e Senhor nosso, por meio das coisas criadas não pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, seja anátema (De Revel. Cân. 1); e também: Se alguém disser que não é possível ou não convém que, por divina revelação, seja o homem instruído acerca de Deus e do culto que lhe é devido, seja anátema (Ibid. Cân. 2); e, finalmente: Se alguém disser que a divina revelação não pode tornar-se crível por manifestações externas, e que por isto os homens não devem ser movidos à fé senão exclusivamente pela interna experiência ou inspiração privada, seja anátema (De Fide, Cân. 3).” 19

As filosofias modernistas tiveram a pretensão de conhecerem melhor o homem pela luz da razão, prescindindo da fé, ou seja, prescindindo de Deus, e o que conseguiram foram desfigurar o conhecimento sobre o homem e de tudo que emana dele, como o seu ser religioso, social, político e econômico, afastando-o assim de sua própria natureza. A razão não pode prescindir da fé, pois “a fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade” 20 , seja a verdade sobre Deus, seja a verdade sobre o homem e tudo que emana do seu ser, seja a verdade sobre toda a criação.

O liberalismo econômico

O liberalismo econômico, partindo da visão filosófica liberal do homem, concentra todas as coisas nas iniciativas e nos interesses individuais. O filósofo e economista liberal Adam Smith (1723 – 1790) acreditava num “são egoísmo individual” como motor do dinamismo econômico. 1 A única lei fundamental que deve reger a economia é a lei da oferta e da procura que, quando respeitada, produz, espontaneamente, a completa harmonia dos interesses individuais. Essa concepção atribui ao lucro e à ganância pela ganância o caráter de fim último da economia. 1

Aqui devemos recordar que o fim último da economia deve ser o bem comum do homem 21, 22, mas essa concepção liberal de economia, que tem o lucro como fim, perverte a ordem justa da economia, fazendo de um meio, um fim, já que o lucro é o meio pelo qual se busca alcançar o fim que é o bem do homem, bem esse que deve envolver sua dimensão imanente e transcendente, 23, 24 dimensão transcendente que é ignorada, quando não é negada, no liberalismo econômico.

Outro erro é ignorar o apetite insaciável do homem que, quanto mais bem material possui, mais buscará possuir, mesmo que em detrimento ao bem de outrem. Essa insaciabilidade do homem se deve à sua natureza decaída após o pecado original, 25 que é negada pelos liberais que consideram o homem naturalmente bom e justo e que sua queda se deve à sociedade que limita sua liberdade e não o pecado original, como afirma a Santa Igreja Católica. Sendo o homem um ser com uma dimensão transcendente, só na transcendência, ou seja, só em Deus o homem pode encontrar sua saciedade, como bem disse Santo Agostinho no seu livro Confissões: “Fizeste-nos para Ti e inquieto está nosso coração, enquanto não repousa em Ti,” 26 pois não será na sua dimensão inferior que o homem pode encontrar a saciedade de seus apetites, mas somente através de sua dimensão superior que abre o homem a Deus, o Sumo Bem, princípio e fim de sua própria existência.

No liberalismo econômico, o direito de propriedade é exaltado como um direito absoluto, de modo tal que o proprietário pode até destruir o bem que possui em nome dos seus direitos e à propriedade não se atribui nenhuma função social.27 No texto sobre o princípio da destinação universal dos bens 28, tratamos sobre a propriedade privada e sua função social, por isso quero apenas reafirmar o que afirma a Santa Igreja Católica sobre o direito de propriedade, em oposição ao princípio liberal: “A tradição cristã nunca reconheceu o direito à propriedade privada como absoluto e intocável: pelo contrário, sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os bens da criação inteira: o direito à propriedade privada está subordinado ao direito ao uso comum, subordinado à destinação universal dos bens. […] O ensinamento social da Igreja exorta a reconhecer a função social de qualquer forma de posse privada.” 29

Já o trabalho humano é equiparado a uma mercadoria. Objeto de compra e venda de mercado, com omissão da dignidade própria da pessoa, sendo que o salário leva em conta apenas o indivíduo que trabalha e não o sustento de sua família. 27 Tal relação de trabalho e critério de remuneração foi condenada pela Igreja como sendo injusta já que não leva em conta nem a dignidade do homem e nem o princípio da subsidiariedade. 30

A relação do homem com o trabalho vai além de um ofício prestado pelo empregado ao empregador em vista de um salário, não devendo, pois, ser entendida somente em sentido objetivo e material, mas há que se levar em conta a sua dimensão subjetiva, enquanto atividade que exprime sempre a pessoa, além disso, o trabalho tem toda a dignidade de um âmbito no qual deve encontrar realização a vocação natural e sobrenatural da pessoa. 31 O trabalho é um bem do homem — é um bem da sua humanidade — porque, mediante o trabalho, o homem não somente transforma a natureza, adaptando-a às suas próprias necessidades, mas também se realiza a si mesmo como homem e até, num certo sentido, se torna mais homem”. 32

Assim sendo, o homem não pode ter sua relação com o trabalho como uma mercadoria que pode ser descartada quando não tem mais serventia e nem como um ofício a ser prestado apenas em vista de um salário, mas tanto o empregado quanto o empregador devem levar em conta toda essa dimensão subjetiva do trabalho, tanto na responsabilidade, por parte do empregado, para com o empregador, para consigo mesmo e para os que se beneficiam do seu ofício e a responsabilidade, por parte do empregador, do salário e da estabilidade de seu empregado, bem como das justas condições de trabalho.

Importante também ressaltar que o salário a ser pago ao empregado não pode levar em conta apenas o ofício por ele prestado e nem apenas o indivíduo que trabalha, mas também deve ser proporcionado às necessidades de sua família. 33, 34

O liberalismo e a sociedade/Estado

Um ponto de constante divergência entre a Doutrina Social da Igreja e as ideologias políticas é o Seu conceito de Estado e de sua função na sociedade e, por isso, não raro, a Igreja é acusada de ser comunista, por parte dos liberais, e de ser liberal, por parte dos comunistas. A verdade é que a Igreja se encontra num plano superior à das ideologias “na medida em que ela reconhece Deus, transcendente e criador, o qual interpela o homem como liberdade responsável, através de toda a gama do criado” 35, ou seja, a visão da Igreja sobre o homem e de tudo que emana dele, como a política, a economia e o social, não parte de visões reducionistas e equivocadas da realidade provindas das filosofias modernas e das ideologias, mas parte de uma visão total que reconhece toda a dimensão imanente e transcendente do homem a partir da lei natural e da Revelação Divina em Jesus Cristo.

Antes de falar sobre a visão liberal de sociedade e de Estado, quero relembrar o já dito no texto sobre o princípio do bem comum, 36 onde tratei do papel do Estado segundo a concepção católica: “o bem comum é a razão de ser da autoridade política” 37 , bem comum esse entendido como o conjunto de condições da vida social que permitem o homem atingir mais plena e facilmente a própria perfeição 38 e, como dito no referido texto, a perfeição nada mais é que a ascensão do homem em virtudes, desde as naturais, comuns a todas as pessoas de boa vontade, até à configuração do homem ao homem perfeito, Jesus Cristo, configuração essa que se chama santidade. 36 Cabe ao Estado, então, garantir coesão, unidade e organização à sociedade civil da qual é expressão, de modo que o bem comum possa ser conseguido com o contributo de todos os cidadãos. 37 Tal Estado não pode ferir o princípio da subsidiariedade, absorvendo as pessoas na coletividade, mas antes contribuir para o crescimento de cada um, dentro de seu corpo intermédio, numa ação colaborativa e não assistencialista e muito menos absortiva. 30 E, por fim, a Igreja não tem um tipo de governo particular que defenda, apesar de ver com simpatia a democracia para o tempo moderno, desde que esteja fundamentada na lei moral. 39

Diante do exposto podemos verificar que a ação do Estado, na concepção católica, deve ser ativa na promoção do bem comum, sem, contudo, absorver as pessoas e os corpos intermédios no aparato estatal. A função do Estado, então, pode ser resumida numa frase: O Estado não deve “deixar fazer” e nem “fazer por si mesmo” e sim “ajudar a fazer”.

Agora passamos a falar sobre a concepção liberal do Estado e da sociedade: em primeiro lugar, o liberalismo não reconhece nenhuma forma de governo como legítima que não seja a democracia, erigindo assim um “mito democrático” em que a multidão é a fonte suprema de toda autoridade e de toda a lei, desembocando num panteísmo político, já que Deus não é reconhecido como fonte de toda a autoridade, gerando assim, um povo divinizado. 40 Para o liberalismo, é todo o povo que governa como único soberano, e a autoridade não é senão a mandatária ou delegada da multidão.  Não entrarei em maiores detalhes sobre a democracia, já que tratarei desse assunto no último texto dessa série sobre a Doutrina Social da Igreja.

Ao postular que o respeito à liberdade absoluta de cada cidadão assegura automaticamente a harmonia dos interesses particulares, como se as solidariedades sociais pudessem ocorrer de forma automática como consequência dessa liberdade absoluta dos indivíduos e não como como um fim e um critério mais alto do valor e da organização social, 23 o liberalismo suprime todos os corpos intermediários, visto como limitadores da liberdade e do desenvolvimento do homem e fonte de sua corrupção. O Estado, na concepção liberal, é definido como ditatorial por natureza, sendo relegado a simples custódio da liberdade de da propriedade de cada cidadão e possui uma autoridade política que carece de qualquer função ativa. 27

As relações entre moral X direito e entre a cultura X religião, no liberalismo.

Uma vez que o indivíduo é autônomo, segundo a concepção liberal, ele não reconhece outras normas além daquelas que ele dita a si mesmo, estando, assim, todos os valores morais reduzidos ao subjetivo. Tal concepção faz do homem um ser dotado de autoridade máxima sobre o bem e o mal e independente dos demais, pois o indivíduo tem liberdade e autoridade para suas decisões, individualmente falando. 27

Nota-se que não há espaço para a religião, tida como algo totalmente subjetivo e relegada à esfera privada, não podendo interferir na sociedade como um todo e nem no Estado, assim temos: a separação entre o Estado e a religião; entre a moral e a religião, já que a moral passa a ser definida pelo indivíduo; e por fim, a separação entre o direito e a moral, iniciando o que chamamos de positivismo jurídico onde a “legislação se torna com frequência somente um compromisso entre diversos interesses: procura-se transformar em direitos, interesses particulares ou desejos que contrastam com os deveres derivantes da responsabilidade social. Nesta situação, é oportuno recordar que cada ordenamento jurídico, tanto a nível interno como internacional, haure em última análise a sua legitimidade da radicação na lei natural, na mensagem ética inscrita no próprio ser humano. Em definitivo, a lei natural é o único baluarte válido contra o arbítrio do poder ou os enganos da manipulação ideológica.” 41

Essa exaltação dos valores individuais também afeta o plano da cultura, que é concebida como uma atividade autônoma, desvinculada dos valores éticos e a arte acaba por receber uma liberdade absoluta desprovida de verdade. É o culto da “arte pela arte”. Nesse contexto, é frequente a mentira, travestida de verdade, da “liberdade absoluta de expressão”, em que, em nome de tal liberdade, se pode dizer e fazer tudo o que bem quiser no campo da arte e qualquer ação do Estado para limita-la é vista como censura, mesmo que, em nome dessa liberdade, vilipendie pessoas, crenças e raças e mesmo que se utilize dessa liberdade para propagar tudo o que é imoral e nocivo à sociedade e o mais grave, mesmo que denigre a imagem de Deus, na Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, na Sua Santa Igreja e nos Seus Santos. O Estado tem o dever de, em nome do bem comum, limitar a liberdade onde ela se volta contra o bem comum de todos. Isso não é uma ação ditatorial, nem comunista, nem fascista, nem nazista, é simplesmente justiça.

No plano religioso, o liberalismo conduz de início ao um indiferentismo e em seguida ao ateísmo. A religião se reduz a sentimentos subjetivos e relegado apenas à esfera privada, sem nenhuma influência na esfera pública e, em nome do laicismo, toda e qualquer busca de interferência da religião na esfera pública é tida como uma afronta ao estado democrático de direito e uma agressão a laicidade do Estado. Tal pensamento revela um laicismo intolerante e ateu por parte dessa democracia liberal, “que hostilizam qualquer forma de relevância política e cultural da fé, procurando desqualificar o empenho social e político dos cristãos, porque se reconhecem nas verdades ensinadas pela Igreja e obedecem ao dever moral de ser coerentes com a própria consciência; chega-se também e mais radicalmente a negar a própria ética natural. Esta negação, que prospecta uma condição de anarquia moral cuja consequência é a prepotência do mais forte sobre o mais fraco, não pode ser acolhida por nenhuma forma legítima de pluralismo, porque mina as próprias bases da convivência humana.” 42

Conclusão

Diante de todo o exposto nesse texto, concluímos que a sociedade liberal, fruto da ideologia liberal que desatou os homens dos vínculos que o protegiam, especialmente da Moral Católica e dos corpos naturais, o escravizou: no campo religioso, às divindades da Ciência, do Progresso e da Democracia; no campo intelectual, submetendo-o aos mitos do materialismo evolucionista ao separar a razão da fé, tida como uma mera superstição e relegada a ser vivida apenas na esfera privada; no campo da moral, ao sentimentalismo romântico de uma liberdade individual que não reconhece limites levando a uma ditatura do relativismo que não aceita uma verdade universal a quem todos devem obediência; no campo econômico, ao despotismo do dinheiro em que o lucro é o fim da economia e não o bem comum dos homens; no campo político, à oligarquia dos homens sem virtudes que governam o povo buscando seus interesses pessoas ou de partido e não o bem comum temporal dos governados. 43

Essa sociedade liberal foi a base pela qual o marxismo surgiu e pôde se desenvolver com consequências ainda mais nefastas que as do liberalismo e esse será o tema do próximo texto.

Salve Maria e Viva Cristo Rei!

Rômulo Felix do Rosario, casado, pai de 5 filhos, sendo 3 no Céu, médico pediatra, professor no Centro Anchieta (www.centroanchieta.org), uma iniciativa de fiéis católicos que visa promover a cultura católica nos mais variados âmbitos da vida do homem tendo como finalidade a busca da santidade. Coordenador do Projeto Social Vida, um grupo pró-vida da paróquia Nossa Senhora de Guadalupe, área pastoral de Vila Velha e Ministro Extraordinário da Distribuição da Sagrada Comunhão Eucaristia na mesma paróquia.

Referencias:

  1. A Ordem Natural, Carlos Alberto Sacheri, Edições Cristo Rei, 1 ed., p. 68. 
  2. https://www.infoescola.com/filosofia/a-filosofia-de-rousseau/
  3. Papa São Paulo VI, Carta Apostólica Octogesima adveniens, n° 35.
  4. CIC, cân. 2515.
  5. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 120 – 123.
  6. A Ordem Natural, Carlos Alberto Sacheri, Edições Cristo Rei, 1 ed., p. 67.
  7. https://padrepauloricardo.org/aulas/o-nominalismo-de-ockham
  8. https://padrepauloricardo.org/aulas/a-peste-negra
  9. https://www.todamateria.com.br/renascimento-caracteristicas-e-contexto-historico/
  10. https://padrepauloricardo.org/blog/reforma-nao-revolucao
  11. https://padrepauloricardo.org/aulas/martinho-lutero
  12. https://www.veritatis.com.br/descristianizacao-e-revolucao-anticrista/
  13. http://www.montfort.org.br/bra/documentos/enciclicas/silabo/
  14. http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19850223_declaration-masonic_articolo_po.html
  15. Papa Leão XIII, Encíclica Humana genus, n° 12.
  16. Papa Leão XIII, Encíclica Humana genus, n° 22.
  17. Papa São Paulo VI, Carta Apostólica Octogesima adveniens, n° 26.
  18. https://padrepauloricardo.org/blog/os-bastidores-espirituais-de-um-atentado
  19. Papa São Pio X, Encíclica Pascendi dominici gregis, 1ª parte, o modernista filósofo.
  20. Papa São João Paulo II, Encíclica Fides et Ratio, p. 1.
  21. Papa São Paulo VI, Carta Apostólica Octogesima adveniens, n° 46.
  22. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 478.
  23. Papa São Paulo VI, Encíclica Populorum progressio, n° 26,
  24. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 340.
  25. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 116.
  26. Santo Agostinho, As Confissões, I, 1,1.
  27. A Ordem Natural, Carlos Alberto Sacheri, Edições Cristo Rei, 1 ed., p. 69.
  28. https://www.bompastorpraia.com.br/destinacao-universal-dos-bens/
  29. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 177 – 178.
  30. https://www.bompastorpraia.com.br/o-principio-da-subsidiariedade/
  31. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 101.
  32. Papa São João Paulo II, Encíclica Laborem exercens, n° 9.
  33. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 91.
  34. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 250.
  35. Papa São Paulo VI, Carta Apostólica Octogesima adveniens, n° 27.
  36. https://www.bompastorpraia.com.br/o-principio-do-bem-comum/
  37. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 168.
  38. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 2005, cân. 164.
  39. https://www.bompastorpraia.com.br/participacao/
  40. A Ordem Natural, Carlos Alberto Sacheri, Edições Cristo Rei, 1 ed., p. 249 – 250.
  41. http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2007/february/documents/hf_ben-xvi_spe_20070212_pul.html
  42. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 572.
  43. Padre Julio Meinvielle, Concepção Católica da Política, editora Centro Anchieta, 1ª ed., pg. 115 – 116.